O Rio de Janeiro é o espelho do Brasil. O que ocorre no Rio de Janeiro fatalmente se transmitirá em cadeia para os outros Estados da Federação. As questões de justiça criminal e ordem pública não fogem desta regra. Portanto, é estratégico manter a atenção, estudar o cenário, analisar as experiências e observar as políticas lá realizadas, ajudando no alcance dos objetivos. A solução desta guerra envolve leis duras e um Sistema de Justiça Criminal integrado, ágil, coativo e comprometido em garantir o direito da população à segurança pública.

domingo, 15 de maio de 2016

A SÍNDROME DE DOM QUIXOTE NO RIO DE JANEIRO

PÁGINA INTERNACIONAL, 15/12/2010

Por Raphael Lima

[O colaborador Giovanni Okado não pode acessar o blog hoje, então estou postando um excelente texto de sua autoria. Aproveitem!]




 GIOVANNI OKADO



Quem não se lembra do velho fidalgo Dom Quixote de La Mancha, o personagem medieval de Miguel Cervantes que queria reviver os tempos romanescos da cavalaria? E quem não se lembra dos acontecimentos recentes na cidade do Rio de Janeiro, que passaram na TV como um “Tropa de Elite” ao vivo? O que ambos têm em comum? O emprego das Forças Armadas para zelar pela segurança pública.

Inevitavelmente, a primeira pergunta a ser colocada na ordem do dia é: afinal, para que servem as Forças Armadas? O artigo 142 da Constituição define como sua competência primordial e exclusiva a defesa da pátria contra hostilidades externas e a garantia dos Poderes Constitucionais, sendo competência secundária o seu emprego para a manutenção da lei e da ordem interna, quando solicitado pelos Poderes da República.

É competência das forças policiais, discriminadas no art. 144, a manutenção da segurança pública. No entanto, em caráter emergencial, na impossibilidade de mantê-la pelas forças competentes, pode-se recorrer ao braço armado, respeitando o Decreto nº 3.897, de 2001, cujo emprego deve ser temporalmente limitado e territorialmente especificado.

Em uma sociedade democrática e, felizmente, livre de ameaças externas imediatas a nossa soberania, a percepção comum que se têm é de delegar outras ocupações aos militares, já que “não estão fazendo nada”. Ledo engano. Militar não é empregado da Camargo Correia, ou assistente social. Não deve carregar pás ou roupas doadas, mas armas; ele existe para fazer a guerra, o reino da vida ou da morte, como definiu Sun Tzu há mais de dois milênios.

O que aconteceu no Rio de Janeiro foi uma guerra? Guerra é, antes de tudo, o enfrentamento entre dois ou mais exércitos regulares, cada qual lutando pela sua bandeira. Para o general prussiano Clausewitz, tido como o filósofo da guerra, esta é “a continuação da política por outros meios”, enquanto que o historiador militar John Keegan a considera como um fenômeno cultural.



Três questões: os traficantes dos morros fluminenses podem ser considerados como um exército regular? Quais os seus objetivos políticos? Que inclinação beligerante eles têm? Uma fuga completamente desorganizada, reprovável estrategicamente até pelo pior exército do mundo, a estrita finalidade de lucrar com o tráfico de drogas e nenhuma cultura bélica. Portanto, isto está longe de ser uma guerra. Um primeiro sintoma da síndrome de Dom Quixote, tratar moinhos de vento como dragões.

Se não há dragões, e sim moinhos de vento, por que empregar os supostamente “desocupados” militares? Porque as forças policiais competentes foram incapazes de manter a ordem interna. Mas o buraco é mais fundo. O emprego do braço armado é recorrente em questões de segurança pública no Rio de Janeiro, o que leva a crer que impera uma inércia política – em âmbito federal e estadual – no adequado tratamento da criminalidade e violência urbana: por exemplo, 40 toneladas de drogas não surgem da noite para o dia. Não se resolve o problema das forças policiais criando problemas para as Forças Armadas!

Outro sintoma da síndrome de Dom Quixote. É mais do que visível que o aclamado poder do Estado não sobe os morros fluminenses. Nos tempos de Brizola, houve até um consentimento tácito: policiais não sobem e criminosos não descem. O Estado é uma instituição perpétua e não intermitente, não pode dar a sua demonstração de força circunstancialmente, com o pretenso heroísmo quixotesco, que exagera na qualidade de suas batalhas.

É preciso pôr termo a esta síndrome de Dom Quixote no Rio de Janeiro, de modo que as Forças Armadas e as forças policiais exerçam corretamente as funções próprias que lhes são atribuídas. A acomodação política diante do problema produz e reproduz o paradoxo quixotesco: sob o conforto da prontidão do emprego das Forças Armadas para remediar as inércias administrativas, celebra-se a efêmera apologia do poder do Estado. Até quando?