O Rio de Janeiro é o espelho do Brasil. O que ocorre no Rio de Janeiro fatalmente se transmitirá em cadeia para os outros Estados da Federação. As questões de justiça criminal e ordem pública não fogem desta regra. Portanto, é estratégico manter a atenção, estudar o cenário, analisar as experiências e observar as políticas lá realizadas, ajudando no alcance dos objetivos. A solução desta guerra envolve leis duras e um Sistema de Justiça Criminal integrado, ágil, coativo e comprometido em garantir o direito da população à segurança pública.

domingo, 28 de dezembro de 2014

BELTRAME - TEMO UM BANHO DE SANGUE SE ALGUÉM DER MARCHA A RÉ


REVISTA ISTO É 05/12/2014 21h32

José Mariano Beltrame: "Temo um banho de sangue se alguém der marcha a ré". Ao explicar por que resolveu continuar no cargo, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro diz que a onda de assassinatos de PMs não representa uma crise das UPPs

RUTH DE AQUINO



O XERIFE
José Mariano Beltrame, em 2011, em frente à favela do Borel, no começo das UPPs. “No Rio, há a tolerância da sociedade e a leniência do Estado” (Foto: Andre Valentim/ÉPOCA)

José Mariano Beltrame continua a correr, “que nem cavalo velho”, porque sua cachaça, diz, é a atividade física. Não corre de traficante ou de miliciano. Gaúcho por origem, teimoso por natureza, com 20 ameaças de morte cadastradas, Beltrame se tornou, após oito anos de trabalho, o maior sobrevivente no comando da Segurança Pública do Rio de Janeiro. A outra cachaça de Beltrame é a pacificação. As UPPs já conheceram dias melhores. Hoje, os bandidos atacam com fuzil as sedes, as patrulhinhas e os policiais. Mataram cinco PMs e um cabo do Exército nos últimos dias de novembro. Na semana passada, Beltrame nomeou o tenente-coronel Luís Claudio Laviano, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope), como novo coordenador das UPPs, e deu esta entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA – Há oito anos, o senhor dizia que a Justiça prejudicava seu trabalho. Ainda hoje?
​José Mariano Beltrame – De certa forma, sim. Prendemos 41 no (Complexo do) Alemão, após seis meses de investigação. Voltaram para as ruas. Agora, temos de recapturá-los, quando poderíamos procurar outros 40 criminosos. Nove pessoas da Rocinha que deram tiros num domingo de praia foram soltas. No último feriadão no Rio, apreendemos 120 menores. Apareceram cinco pais e levaram os filhos. Os outros foram soltos. Possivelmente assaltarão na praia de novo. Não falo necessariamente em encarcerar menor. Digo a quem for assaltado e ficar sem relógio, cordão, celular e bolsa, que pense duas vezes antes de reclamar que a polícia não trabalha.

ÉPOCA – O senhor dizia que não havia hipótese de continuar como secretário de Segurança. Por que ficou?
Beltrame – Estava e estou muito cansado. Mas algumas coisas me fizeram permanecer. Acredito que preciso mudar a mentalidade sobre a segurança pública. Tirar o foco da mesmice do tiro, do cordão de ouro. Tenho receio de que alguém dê uma contraordem na pacificação. No momento em que se der uma marcha a ré, teremos um banho de sangue no Rio, porque as favelas, de forma ostensiva ou silenciosa, apoiam esse projeto. As UPPs têm de virar uma política de Estado, não do secretário.

ÉPOCA – O senhor é a favor da redução da maioridade penal?
Beltrame – Sim. A idade e o período de detenção deveriam depender da gravidade do crime que o menor cometeu. O jovem hoje pode votar, pode abrir uma empresa, tem muito mais liberdade, informação e maturidade que antigamente. Precisa sofrer as agruras da lei em cima do que fez.

ÉPOCA – As prisões não recuperam ninguém...

Beltrame – Concordo. Mas deixar na rua também não funciona. Hoje é assim: roubaram o cordão da madame! Polícia! Polícia! Cadê? E quando você vai checar aquele ladrão, menor ou maior de idade, já foi conduzido para a polícia e não ficou preso. Tem uma lei no Brasil, número 12.403. Essa lei diz o seguinte: crimes que, em tese, têm penas inferiores a quatro anos não levam à prisão. A pessoa responde em liberdade. Ótimo. Até aí, sem problemas. Agora, a sociedade sabe que essa lei existe e apoia? Se você pegar alguém dirigindo um carro que consta como roubado às 4 horas da manhã, não adianta prender. Porque ele é receptador, e o crime de receptação é de três anos. Se ele tiver uma arma de calibre, sem porte, ainda pode sair por fiança.



ÉPOCA – O Rio é diferente dos outros Estados?

Beltrame – Fui com minha família ver a Árvore de Natal na Lagoa. Passaram órgãos responsáveis recolhendo carrocinhas de algodão-doce. Caminhei uma quadra em Ipanema e vi um barzinho cheio de mesas na calçada. Só a carrocinha é removida? E as mesas? O pau que dá em Chico, dá em Francisco. Em restaurantes, carros belíssimos dos clientes em fila dupla. No dia seguinte, o cara abraça a Lagoa em passeata pela paz. A visão dele de violência não inclui a desordem. No Rio, há a tolerância da sociedade e a leniência do Estado.

ÉPOCA – O governador Pezão prometeu R$ 600 milhões a policiais em reajustes salariais e também a contratação de novos 6 mil PMs, com o objetivo de chegar a 60 mil até 2018. O senhor está feliz?
Beltrame – Estou feliz. Mas dificilmente a gente terá uma segurança plena. Não dá para querer uma polícia sueca, a sociedade não é sueca. Agora, baixo salário não é desculpa para corrupção ou roubo. Já ganhei muito mal e nunca peguei nada de ninguém. O país inteiro vê que tem gente muito bem estudada, muito educada, muito rica, que não para de roubar.

ÉPOCA – Não adianta formar novos policiais, com aulas de filosofia, direitos humanos e ética? PMs são acusados de estuprar no Jacarezinho, somem com o Amarildo na Rocinha, assassinam um menino no Sumaré, revendem para o tráfico armas apreendidas, achacam comerciantes e moradores. Para completar, o sargento que dava aula de ética invadiu armado um depósito da prefeitura para retirar seu carro rebocado.
Beltrame – Desses casos, o único que envolve policiais novos é do Jacarezinho. Infelizmente, mesmo tendo sido expulsos da corporação, foram soltos na semana passada, “por falta de provas”. Preferia que continuassem presos. A UPP já envolve 10 mil policiais, atinge direta e indiretamente 2 milhões de pessoas e não podemos ser ingênuos. Há policiais que a gente não quer.



ÉPOCA – O senhor não fica frustrado?
Beltrame – A cada assinatura de expulsão de um policial, o sentimento é muito ruim. Mas não fico frustrado. Porque temos infinitos casos de sucesso. Historicamente, nunca se prendeu coronel, comandante. A gente fez isso. Foi difícil. Fizemos e previno que faremos mais. Sou a favor de processos justos, mas rápidos, porque a celeridade é a alma da punição para mim. A impunidade começa quando você liga para o 190 e não te atendem.


ÉPOCA – O tráfico e a milícia ainda comandam os territórios das comunidades, mesmo as pacificadas?
Beltrame – A UPP acabou com aqueles paióis de 500 quilos de droga que existiam antes. Não digo que isso não exista. Pode ser que daqui a pouco apareça. Mas não tem mais aquela história de mandar fechar a rua tal porque chegará o caminhão lá de Mato Grosso. Hoje, a venda da droga é mais picada. Claro que você vê pessoas armadas, mas não há mais aquela ostentação, gente abanando armas e saindo da Rocinha com braçadas de fuzil.

ÉPOCA – O senhor apoia a descriminalização da maconha?
Beltrame – Já dá para discutir. A descriminalização da maconha tem de acontecer, embora seja tabu no Rio. Tenho um temor. O Estado cuidará do viciado? Ele é doente, tem o direito de se recuperar. É o SUS que fará isso? E como? Será vendido em carteira de cigarros, em potinho, como na Califórnia? Meu medo é que um oportunista erga a bandeira da legalização da maconha, aí libera e não se sabe como fazer.

ÉPOCA – Sobre os três PMs mortos no sábado, dia 29, o senhor diz que a ordem não partiu do bandido Elias Maluco, preso em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Acredita realmente que foi um acaso?
Beltrame – Sim. Eles foram abordados como pessoas comuns. Há três possibilidades nas mortes de PMs na rua. Ou eles reagem atirando, como policiais; ou são identificados por uma carteira, ou camiseta por baixo; ou, infelizmente, em alguns casos, é um acerto de contas, porque estavam envolvidos com o crime. A morte de um policial é um troféu para o marginal. Como foram vários casos num curto espaço de tempo, começa a gritaria como se fosse uma crise estrutural. Mas não é.


ÉPOCA – Cento e cinco policiais foram assassinados neste ano no Rio. Policiais civis e militares mataram 416 pessoas em serviço. Não são números de guerra civil?
Beltrame – Só foram mortos até agora neste ano 15 policiais em serviço. Os outros estavam de folga, à paisana. Diria que esses números são de um Estado com uma história de confronto. Era para estar melhor hoje, sim, se o sistema amplo de segurança funcionasse. Não adianta ter um policial com um fuzil numa escadaria na favela. A culpa não é da desigualdade social, que existe desde que o mundo é mundo. A falta de integração entre os vários setores e a impunidade ajudam a inflar essas estatísticas.

ÉPOCA – Qual é o papel das Forças Armadas? Pezão pediu a permanência na Maré. Há quem considere desvio de função.
Beltrame – As Forças Armadas vêm fazendo um trabalho excelente. O governo federal precisa mesmo entrar. Os Estados não têm condição de resolver isso. Essa é a grande verdade. Aceito a ajuda de todo mundo. A geografia do Rio complica ainda mais. O cabo do Exército Michel Mikami foi morto no dia 30 de novembro por um atirador em lugar estratégico na Maré. Ele estava de capacete e colete. Tomou um tiro no rosto. Mesmo com todos esses problemas, Pezão teve 74% de votos em áreas com UPP, onde ele seria eleito no primeiro turno. É uma aprovação impressionante.

HOSPITAL DO TRÁFICO EM FAVELA DO RIO



Criminosos mantinham "hospital do tráfico" em favela do Rio. Posto médico foi montado em barraco no Complexo do Alemão para atender bandidos feridos em confronto com policiais

HUDSON CORRÊA
13/12/2014 10h00




UPP no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro (Foto: Severino Silva/Agência O Dia/Estadão Conteúdo)

Traficantes passaram a adotar táticas de guerrilha para enfrentar a polícia militar nas favelas pacificadas do Rio de Janeiro. Os criminosos também recrutam adolescentes, até de 15 anos, para chefiar a venda de drogas, como revela a edição desta semana de ÉPOCA. São novas estratégias do tráfico contra a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora nos morros cariocas. Antes das UPPs, moradores estavam habituados a encontrar traficantes armados com fuzis e pistolas caminhando despreocupadamente pelas ruas das favelas. Depois da pacificação, eles continuam armados, mas de forma menos ostensiva. Escondem-se em vielas e, aproveitando-se do fato de conhecer melhor a geografia daqueles locais, preparam emboscadas contra os policiais. Investigadores da Polícia Civil descobriram até um "hospital do tráfico", montado por bandidos, para receber feridos nos confrontos. O posto de atendimento médico ficava em um barraco numa rua sem saída da favela de Nova Brasília, localizada no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio.



Logo após as ocupações da polícia, os bandidos se refugiaram em comunidades sem policiamento, onde preparam e embalam a cocaína, a maconha e o crack que serão vendidos em bocas de fumo espalhadas nas grandes favelas da cidade. A venda pulverizada não evitou um aumento de 260% nas apreensões de drogas, feitas em áreas de UPPs, nos últimos anos. Para compensar o prejuízo, os traficantes começaram a agir como as milícias, cobrando de moradores taxas pelo fornecimento de botijões de gás, de galões de água mineral e acesso a TV a cabo clandestina, a chamada “gatonet”.

Entre abril e setembro deste ano, a Polícia Civil prendeu mais de 60 pessoas sob acusação de envolvimento com o tráfico e com a morte de policiais de UPPs, só neste ano ocorreram oito assassinatos. Um dos presos foi Bruno Eduardo da Silva Procópio, de 34 anos, conhecido como Piná, que agia na favela do Parque do Proletário, também localizada no Alemão. Segundo a polícia, Piná recebia ordens dos chefes da facção Comando Vermelho detidos em presídios federais de segurança máxima para atacar UPPs. Ele foi transferido em junho para a penitenciária federal de Porto Velho, em Rondônia.

Preso, um dos membros da quadrilha de Piná resolveu delatar os comparsas e relatou como e por que o tráfico ataca. Lindemberg Matias da Silva, de 22 anos, conhecido como Anão, disse que os policiais do Parque Proletário aumentaram a repressão ao tráfico, o que levou um grupo de bandidos a decidir usar seus fuzis para atingir a sede da UPP. No ataque, a soldado Alda Rafael Castilho morreu com um tiro na barriga. Três meses antes, em novembro de 2013, o também soldado Melquizedeque dos Santos Basílio fora morto com tiros nas costas enquanto fazia patrulhamento no Parque Proletário. Lindemberg afirmou que o crime foi encomendado por Piná, chefe do tráfico, e executado por homens em dois carros.

O NOVO DESAFIO DA PACIFICAÇÃO NO RIO DE JANEIRO



REVISTA ÉPOCA 27/12/2014 10h00

Traficantes recrutam menores de idade para chefiar o tráfico nas favelas cariocas

HUDSON CORRÊA




MANIFESTAÇÃO
Protesto em Copacabana na semana passada. Ao todo, 152 policiais foram assassinados no Rio de Janeiro nos últimos dois anos. O documento obtido por ÉPOCA revela a participação de menores nos assassinatos (Foto: Glaucon Fernandes/Eleven/Ag. O Globo)



A pacificação das favelas cariocas começou em 2008 e avançou para valer no final de 2010, quando a polícia ocupou o Complexo do Alemão, na Zona Norte, a maior fortaleza dos traficantes no Rio de Janeiro. Quatro anos depois, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) têm resultados para mostrar. Segundo um estudo divulgado na semana passada, elas reduziram em 65,5% os homicídios dolosos nas 50 favelas em que estão instaladas. As mortes em operações policiais caíram 90,7%. As UPPs enfrentam, no entanto, um novo desafio. Os bandidos de início recuaram, agora reagem às ocupações com emboscadas cada vez mais mortíferas. De janeiro a outubro deste ano, 15 policiais militares em serviço foram assassinados, oito deles trabalhando nas UPPs. Em 2013, dos 16 policiais mortos em ação, apenas três eram de UPPs. ÉPOCA teve acesso a documentos de investigações da Polícia Civil sobre como agem as quadrilhas que atacam os policiais. As investigações mostraram um dado novo e preocupante: o tráfico passou a recrutar menores de idade para postos de comando.


Jovens sempre foram arregimentados por traficantes, mas exerciam funções secundárias no comércio de drogas – transportavam pequenas quantidades de entorpecentes ou eram encarregados de disparar fogos de artifício como sinal da chegada da polícia. Agora, os meninos do tráfico viraram chefes. Por ser menores, eles recebem punições mais brandas quando estão presos, e logo estão livres para voltar ao “trabalho”. O adolescente G.A., de 15 anos, é o exemplo mais recente desse novo método dos traficantes. Ele mora com os pais no Complexo do Alemão, parou de estudar no 7º ano do ensino fundamental e dizia trabalhar numa mercearia, com salário de R$ 250 por semana. Em setembro, depois de uma grande operação contra o tráfico na região, o Ministério Público Estadual apontou G.A. como um dos principais gerentes da venda de drogas, encarregado de administrar e proteger da polícia a boca de fumo.



Segundo os investigadores, G.A. faz parte da quadrilha responsável pelo assassinato, em 11 de setembro, do capitão da PM Uanderson Manoel da Silva, de 34 anos. Responsável pela UPP de Nova Brasília, uma das favelas do Alemão, Uanderson foi o primeiro comandante morto em confronto com o tráfico. Por quatro anos, nenhum policial em Unidades Pacificadoras foi assassinado. Desde 2012, quando ocorreu a primeira morte, 15 já foram vítimas. Sete deles estavam em unidades no Alemão.

G.A., o suspeito de envolvimento na morte de Uanderson, passou um mês internado numa instituição para menores infratores. No fim de outubro, foi colocado em liberdade assistida, com a condição de que prestasse serviços à comunidade durante três meses. A Justiça não informou se ele já começou a cumprir o determinado. G.A. não é o único menor suspeito de envolvimento na morte de PMs. Dez adolescentes, com idade entre 15 e 17 anos, foram identificados pela Polícia Civil. Além de G.A., outros dois ocupam a função de gerentes do tráfico. Seis foram levados para instituições de reeducação e já estão em liberdade. Um está foragido. O crescente envolvimento de menores com crimes mais graves levou o secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, a defender em entrevista a ÉPOCA a redução da maioridade penal para esses casos.

A polícia também está atrás dos aliciadores de menores. Edson Silva de Souza, de 27 anos, conhecido como Orelha, foi preso sob suspeita de ter recrutado sete menores para seu bando, dois para o cargo de gerente do tráfico. Em novembro, Edson foi solto graças a um habeas corpus. Um novo mandado de prisão foi expedido, mas ele agora está foragido. O serviço disque-denúncia, que mantém parceria com a Secretaria de Segurança Pública, ofereceu uma recompensa de R$ 20 mil por informações que levem a sua captura.

Em outra estratégia para enfraquecer a pacificação, traficantes se infiltram nos protestos de moradores de favelas para causar tumultos. Os protestos acabam em violentos ataques às sedes das UPPs. No dia 27 de abril passado, uma escuta telefônica autorizada pela Justiça captou a conversa entre um gerente do tráfico e sua comparsa. Ela disse que reunira mais de 50 pessoas para atear fogo na sede da UPP do Alemão. Naquela noite, a base da UPP se salvou. Quatro ônibus foram incendiados, e um posto médico depredado. A polícia identificou um menor de idade entre os mentores da ação criminosa.

A violência crescente contra policiais militares é um tema grave que começa a mobilizar os cariocas. Em protesto organizado pela ONG Rio de Paz, no início do mês, 152 cruzes de madeira foram fincadas nas areias da Praia de Copacabana. Cada uma delas representava um policial morto, durante sua folga ou em serviço, nos últimos dois anos.

domingo, 21 de dezembro de 2014

LÍDER COMUNITÁRIO DO ALEMÃO É ASSASSINADO

VEJA ONLINE 21/12/2014 - 11:24


Líder comunitário de favela é assassinado em centro cultural . Guinha era militante da causa gay e fundador de Grupo Diversidade do Alemão





Polícia reforçou a segurança no Complexo do Alemão, após protesto (Reprodução/TV/VEJA)

O presidente da Associação de Moradores do Conjunto das Casinhas, na comunidade da Fazendinha, no Complexo do Alemão (zona norte), Luiz Antônio de Moura, de 41 anos, foi assassinado na tarde de ontem. Conhecido como Guinha, ele foi baleado em um centro cultural da comunidade. Guinha era militante da causa gay e fundador do Grupo Diversidade LGBT do Alemão.



Os tiros foram disparados de dentro de um carro que passou em frente à casa. O crime é investigado pela Divisão de Homicídios (DH). Um rapaz de 18 anos foi atingido no braço, atendido em um hospital da região e está fora de perigo.

Em sua página no Facebook, Guinha publicou, nos últimos dias, fotos de festas e atividades comunitárias. O líder comunitário é personagem do documentário "Favela Gay", sobre a militância em defesa dos direitos dos homossexuais nas comunidades cariocas, produzido por Cacá Diegues e Renata de Almeida Magalhães. No filme, Guinha contou episódios de perseguição a homossexuais e transexuais do conjunto de favelas.

O líder comunitário dizia que, no passado, eram frequentes ataques comandados por traficantes. "Para eles, policial, x-9 (delator) e gay eram a mesma coisa", disse. A intolerância, afirmou, ficava mais grave com a presença de igrejas evangélicas nas favelas. "Nos cultos, nos atacam abertamente. Se o gay for espírita ou umbandista, complica ainda mais", lamentou.

Em nota, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora informou que policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) ouviram os disparos e encontraram o corpo de Guinha, na localidade de Casinhas, no fim da tarde de ontem. O corpo foi levado para a Instituto Médico Legal (IML).

(Com Estadão Conteúdo)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

SE QUISER, MATO UM SOLDADO POR DIA

REVISTA VEJA, Edição 2403 de 10dez2014.


“Se quiser, mato um soldado por dia”, diz traficante da Maré. Um cabo do Exército, veterano da missão no Haiti, foi morto a tiros na favela carioca

Leslie Leitão





A TROPA ACUADA - Sepultamento do cabo Mikami: os militares estão em desvantagem nos domínios do tráfico no Complexo da Maré (Rafa Von Zuben/Código 19/Estadão Conteúdo)

Faltavam cinco dias para o cabo do Exército Brasileiro Michel Augusto Mikami, 21 anos, encerrar a terceira campanha real de sua curta carreira militar. A primeira foi a missão de paz da Organização das Nações Unidas no Haiti. E depois a Copa do Mundo. O plano de Mikami era voltar para casa, em Vinhedo, cidade vizinha a Campinas, no interior de São Paulo. Como parte da Força de Pacificação formada por 3 000 militares da Marinha e do Exército, Mikami patrulhava as vielas do Complexo da Maré, aglomerado de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. A missão da tropa federal é apoiar a polícia do Rio no que se chamou apressada e exageradamente de “retomada do território do tráfico”. Na tarde da sexta-feira 28, em meio a um tiroteio com os bandidos donos do “território retomado”, o cabo Mikami foi atingido por uma bala de fuzil na cabeça, que o matou instantaneamente. Desde a ação para debelar a guerrilha comunista no Araguaia, em 1972, as Forças Armadas do Brasil não tinham um soldado morto em combate em território brasileiro. O cabo, enterrado com honras militares, é, porém, apenas mais um número da macabra estatística do combate ao crime no Rio de Janeiro. O ano de 2014 ainda não acabou e o número de policiais mortos a tiros por bandidos no Rio de Janeiro chegou a 106 na semana passada. Uma cifra assustadora quando comparada à de outros países. Sim, porque não há base de comparação com cidades. Em Nova York, neste ano, nem um único policial morreu assassinado a tiros por bandidos. Zero. Em todos os Estados Unidos, com quase uma vez e meia a população brasileira, tombaram baleados por bandidos 46 policiais. Menos da metade do que os bandidos mataram em 2014 só no Rio de Janeiro. Todos os estados americanos têm legislação que pune com mais severidade o cop killer, ou assassino de policial. Em Nova York, o cop killer, não importa a circunstância do crime, é enquadrado automaticamente na categoria mais severa do código penal, o assassinato em primeiro grau. O condenado nessa categoria não tem acesso a benefícios jurídicos, como a diminuição de pena por bom comportamento.

VEJA foi ao Complexo da Maré na quarta-feira passada, cinco dias depois da morte do cabo Mikami. O “território retomado”, a “comunidade pacificada”, da propaganda oficial, vivia sua rotina esquizofrênica. As ruas eram patrulhadas por jovens armados com pistolas e radiocomunicadores. A menos de 100 metros de um posto do Exército guarnecido com seis soldados, o carro da equipe de VEJA foi parado pelos traficantes e vistoriado. O gerente do grupo concordou em falar, sem se identificar, dentro de um bar. Ali, tranquilo, deu uma espantosa explicação para a coabitação de militares com bandidos em um mesmo território: os criminosos têm a vantagem por estarem bem armados e conhecerem melhor a região. A morte do cabo Mikami foi descrita por ele como um evento normal, incapaz de perturbar a “paz” do lugar: “Se a gente quisesse, matava um soldado por dia”.



O plano de pacificação que começou em 2008 no Rio de Janeiro teve sucessos iniciais estrondosos com favelas tomadas sem o disparo de um único tiro. No ponto mais alto dos morros, os policiais de elite hasteavam bandeiras do Brasil, do Rio de Janeiro e de suas corporações. Mas, sem que se desse a efetiva ocupação do território pelo estado, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) instaladas nas favelas foram sendo isoladas até chegar à situação atual de monumentos ao fracasso de um plano que parecia vitorioso. Não é raro a guarnição de uma UPP pedir a intervenção de unidades de elite para conseguir sair de sua base. Só no conjunto de favelas do Alemão foram registradas quase duas centenas de tiroteios, escaramuças inconsequentes entre policiais e bandidos, sem que nenhum lado se declarasse vencedor.

Na famosa Favela da Rocinha, a presença constante de 700 policiais não consegue impor a ordem, tampouco impedir o tráfico de drogas e os crimes violentos associados a ele. Rajadas de fuzis automáticos cortam o céu noturno do morro que foi durante algum tempo a vitrine da política de pacificação na cidade. Entre os 267 policiais baleados neste ano, 79 foram feridos em combates em áreas de UPPs, onde oito morreram.

É melancólico constatar que sob o rótulo de “pacificação” esteja ocorrendo mesmo uma guerra. Além dos policiais mortos, perderam a vida no Rio de Janeiro até outubro 481 pessoas em circunstâncias oficialmente registradas em “autos de resistência”. Esse termo deveria descrever apenas situação em que, esgotadas todas as outras opções, a polícia recorre às armas para deter um criminoso. Infelizmente, no Rio de Janeiro, o “auto de resistência” pode ser mesmo a clássica “resistência seguida de morte”, mas serve também para encobrir ações de criminosos de farda. A boa notícia desse lado da trincheira é que as mortes de civis em operações policiais na cidade têm diminuído ano a ano: em 2007, antes do início das UPPs, foram 1 330. A má é que mais policiais estão sendo assassinados. “A verdade é que a polícia está matando menos, mas seus homens continuam morrendo como moscas”, diz Richard Ybars, antropólogo e policial civil.

A lógica mais simples levanta a seguinte questão quando alguém se detém diante da resistência do tráfico no Rio de Janeiro: se os morros não produzem drogas nem têm fábricas de armas pesadas, não seria o caso de, em vez de correr em vão atrás do varejo, impedir no atacado o fornecimento de cocaína e fuzis AK-47 aos bandidos? Raramente se consegue uma resposta satisfatória a essa pergunta. Uma fresta de luz, porém, entra no debate quando se analisam as favelas do Complexo da Maré. Com seus 130 000 habitantes, a Maré tem localização geográfica estratégica. Fica próxima do Aeroporto Internacional Tom Jobim e tem saída para o mar. A área é contígua às duas principais vias de trânsito da cidade, a Linha Vermelha e a Avenida Brasil. “A Maré é muito importante na geopolítica do tráfico, porque quase tudo passa por ela. Para os criminosos, é essencial comandá-la”, diz o sociólogo Cláudio Beato, especialista em segurança pública. Com sua óbvia importância tanto para o atacado quanto para o varejo do comércio ilegal de drogas, o Complexo da Maré deveria merecer atenção especial das autoridades. A região é policiada por soldados jovens vindos de diversas partes do Brasil e treinados — quando são — para outro tipo de batalha. “Essa guerra não é nossa”, disse um deles a VEJA. Não é mesmo. O militar das Forças Armadas é treinado para matar o inimigo. Suas armas são canhões, bazucas, carros de combate, jatos e navios de guerra. Reduzidas à função policial, as Forças Armadas correm o risco de ser desmoralizadas por ter sido colocadas em uma guerra que não podem vencer.


Brendan McDermid/Reuters
AÇÃO E REAÇÃO - Patrulhamento em Nova York, onde os assassinos de policiais recebem pena máxima

​O despreparo é uma queixa comum também em relação às forças que operam nas 38 UPPs do Rio — um contingente incrementado ao ritmo de até 500 homens por mês, formados a toque de caixa para cumprir a meta de pôr a segurança nas favelas nas mãos de uma tropa nova, livre de vícios. “A ânsia política de colocar novas turmas nos morros prejudica a formação”, afirma Paulo Storani, ex-capitão do Bope. A tropa das UPPs é de fato majoritariamente nova, mas nem por isso vícios como corrupção, desvios e apatia foram extirpados. “A intenção era ‘uppeizar’ a PM, mas o que se vê é a ‘peemização’ das UPPs”, diz Beato.

Entre setembro e outubro, duas operações do Ministério Público contra a corrupção na polícia puseram na cadeia mais de quarenta homens. Os promotores investigam ainda uma fraude milionária em unidades de saúde da corporação que deve levar à prisão de mais oficiais. Em consequência dessas denúncias, o comando da PM foi trocado. É um movimento positivo, mas será preciso bem mais do que operações episódicas para reverter a derrocada da segurança no Rio e impedir que as UPPs sejam lembradas apenas como mais uma das tantas utopias massacradas pela realidade.