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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

REMOÇÃO DE FAVELAS


A história de uma palavra tabu. Como a remoção de favelas foi alvo de uma intensa disputa ideológica que resultou na transferência de 140 mil pessoas de 1962 a 1974

FLÁVIO TABAK
O GLOBO
Atualizado:13/12/13 - 11h27

Remoção da Favela do Pasmado em 14/01/1964. Ao fundo, o Estádio do Botafogo Arquivo O Globo


RIO - A remoção de favelas cariocas foi alvo de uma intensa disputa ideológica que ganhou força a partir de meados da década de 1940. Até hoje o assunto é polêmico, um tabu como disse o secretário José Mariano Beltrame, mesmo em circunstâncias diferentes, com as favelas já incorporadas ao tecido urbano da cidade e, algumas delas, ocupadas permanentemente pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). No passado, um marco histórico ajuda a entender por que o Rio transplantou milhares de pessoas das encostas de morros ou de áreas planas ocupadas irregularmente: o Código de Obras do Rio de 1937 determinou, pela primeira vez, que favelas eram ilegais.

O fato histórico é lembrado pelo antropólogo Marco Antonio da Silva Mello, coordenador do Laboratório de Etnografia Metropolitana (IFCS/UFRJ). Ele lembra que a palavra “remoção” remete a uma memória traumática da política de urbanização. Ele diz que, durante a chamada política de erradicação das favelas — promovida entre 1962 e 1974 ao longo dos governos de Carlos Lacerda, Negrão de Lima e Chagas Freitas —, foram retirados 80 assentamentos urbanos de baixa renda.

— Dessas 80 favelas removidas, 140 mil moradores foram levados para as periferias da cidade, contabilizando uma diáspora urbana forçada sem precedentes — explica o professor. — A palavra remoção é objeto de uma disputa que pode ser periodizada de várias maneiras. A mais clara está no código de obras de 1937. Se o código, que vigorou até 1970, diz que a favela é ilegal, ela é efêmera, passageira. Assim, depois deveria ser removida e “higienizada”.

Os resultados históricos da política de urbanização que mudou a cara de diversos bairros do Rio — como a Lagoa Rodrigo de Freitas, que era margeada por centenas de casebres —, passaram por intensas disputas.

Em 1948, Carlos Lacerda publicou uma série de reportagens e artigos que, explica Mello, “usavam explicitamente a ideia de remoção de favelas, de erradicação”. Na chegada dos anos 1960, mais novidades surgiram nesse debate. Com a orientação do padre Louis Joseph Lebret, uma pesquisa conduzida pelo sociólogo José Arthur Rios chamada “Aspectos humanos da favela carioca” foi publicada em dois suplementos do “Estado de S.Paulo”. A discussão estava aberta, e as veias do Rio também, com suas mazelas enquanto o país financiava, a altos custos, a construção de Brasília.

— Eles fizeram aquela que até hoje é a maior e insuperável pesquisa sobre as nossas favelas. E não falavam em remoção, mas, sim, em urbanização. Mostraram que as favelas não eram homogêneas, tinham diferentes estilos construtivos, religiosidades, expectativas de vida, consumo. O resultado foi a disputa no Rio entre remoção e urbanização, colocada no fim dos anos 1950 e começo dos anos 1960 — analisa Mello.

Assim estavam postas as condições para o que ocorreu nas duas décadas seguintes. Professor do departamento de Serviço Social da Puc-Rio e autor do livro “Favelas do Rio de Janeiro, história e direito” (PUC-Pallas/2013), Rafael Soares Gonçalves chama a atenção para uma grande mudança na política da antiga Guanabara, que resultou nas remoções e construções de conjuntos habitacionais. No início do governo Lacerda, diz ele, José Arthur Rios assumiu um cargo importante no governo, para cuidar do serviço social.

— Rios tinha uma perspectiva clara de que era necessário priorizar a melhoria das favelas com possibilidade de regularização fundiária. Quando ele assume, começa uma política de urbanização, existia um esforço. Mas, em 1962, há uma mudança radical dessa direção, com a entrada de recursos importantes dos EUA, dentro do contexto da Revolução Cubana. Uma parte dos recursos foi usada na construção de grandes conjuntos habitacionais, como a Vila Kennedy. Só que Rios foi demitido depois, e assumiu a Sandra Cavalcanti — explica Gonçalves.

A partir daí, as remoções foram aceleradas na administração Lacerda. Mas o governo seguinte, de Negrão de Lima, foi o que mais removeu. Gonçalves explica que o governador era um político de oposição, da linha trabalhista, e até urbanizou uma favela em Brás de Pina, mas existia pressão do governo militar. E ainda houve contextos específicos, como as chuvas de 1966 e 1967.

— As chuvas certamente aceleraram o processo de remoção. Negrão foi contraditório, tentava priorizar a urbanização, mas foi no seu mandato que mais se removeu. Ele teve imposições de cima, e o contexto político era mais difícil — conta Gonçalves.

Polêmicas ou não, as remoções poderiam ter dado certo, com os conjuntos habitacionais funcionando bem até hoje. Gonçalves, que estudou profundamente o tema, estabelece três principais motivos para o fracasso dessa política no Rio. As remoções, diz ele, só foram interrompidas — e deixaram de ter grande força e apoio político— em 1977, quando houve uma tentativa, fracassada, de se remover o Vidigal. O Papa João Paulo II visitou, três anos depois, o Vidigal, e a Igreja Católica teve grande participação na luta por melhores condições de vida nas favelas.

— Há, primeiramente, o problema social, porque a moradia não pressupõe apenas quatro paredes e teto, mas se articula com o bairro, uma vida e uma cidade. O impacto social foi grande. Em segundo lugar, o contexto urbanístico. Estava sendo feita uma cidade periférica, expulsando a população em vez de pensar a cidade de forma diversa. Em terceiro vem o fracasso econômico. Ao contrário de algumas remoções que acontecem hoje em dia, nesse período as pessoas não tinham indenização. Eles tinham só o direito de entrar no financiamento habitacional. E algumas dessas famílias não tinham recursos mínimos para entrar no sistema e foram para habitações provisórias, com casas minúsculas — resume o professor Gonçalves.

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