O Rio de Janeiro é o espelho do Brasil. O que ocorre no Rio de Janeiro fatalmente se transmitirá em cadeia para os outros Estados da Federação. As questões de justiça criminal e ordem pública não fogem desta regra. Portanto, é estratégico manter a atenção, estudar o cenário, analisar as experiências e observar as políticas lá realizadas, ajudando no alcance dos objetivos. A solução desta guerra envolve leis duras e um Sistema de Justiça Criminal integrado, ágil, coativo e comprometido em garantir o direito da população à segurança pública.

terça-feira, 29 de abril de 2014

BARBÁRIE E NÃO BESTEIRAS

O GLOBO, 29/04/2014


Marcus Faustini



A militarização das comunidades, uma das principais marcas das UPPs, desvaloriza a vida



O contundente, frasístico e hilariante “Febeapá — Festival de Besteiras que Assola o País”, criado por Sérgio Porto nos anos 1960, como crítica às loucuras de uma ditadura, pode ser reeditado para uma versão no Rio de Janeiro contemporâneo como um infeliz e nada engraçado Festival de Barbáries que Assola os Pobres.

Pode parecer espantoso e exagerado, mas a ideia de barbárie não deve ser pensada apenas como uma inexistência de civilização, forjando um mundo selvático, sem o direito à vida e à liberdade garantidos, do olho por olho — num resumo nada conceitual para simplificar e demonstrar a gravidade. Não precisamos viver esta oposição extrema aos valores daquilo que é defendido como civilização para estar numa barbárie, basta que os princípios do que é chamado de civilização sejam transformados apenas num mero expediente que não é respeitado. O mais grave é ver o próprio estado democrático de direito operando essa barbárie feito a ditadura. E ainda perceber que isso é uma tradição que vai se consolidando como natural. Cabe repetir aqui que a própria ideia de categorizar o outro como selvagem serviu para dizimar e/ou escravizar povos.

A morte do jovem DG é um dos rastros desta barbárie. Não adianta tratá-la apenas como acidente de percurso, como uma besteirada, fruto de tiroteio inesperado — versão sempre contumaz — ou de um possível e inaceitável acerto de rivalidade — segundo algumas versões que circulam.

Desde o início do processo da presença das UPPs nas favelas, diversas organizações da sociedade civil, pesquisadores e reconhecidos sujeitos atuantes nas causas da juventude e do direito à cidade apontaram o perigoso caminho que este projeto estava tomando na relação com a juventude da favela. O imaginário que se criou colocou o jovem como inimigo deste processo de “pacificação”. Logo nos primeiros anos da UPP, a declaração de um importante membro do governo dizendo que possivelmente perderíamos uma geração de jovens para conquistar a paz abriu espaço para que a relação cotidiana seja pautada na desconfiança mútua — entretanto, sabemos quem tem o poder nesta relação.

Das críticas à proibição dos bailes funk — sem diálogo e alternativas — aos esculachos em “duras” relatados até mesmo em vídeos nas redes sociais ao longo desses anos, nada sensibilizou o governo a criar uma política pública de promoção desta juventude e um ambiente de cuidado desta relação — nem mesmo as repetidas pesquisas que mostraram que a desigualdade se localiza com ênfase na juventude. É claro que existiram iniciativas positivas, sobretudo da sociedade civil independente ou em parceria com o poder público e algumas poucas empresas. Porém elas são apenas bons exemplos fragmentados de um desafio que precisa de um grande esforço e uma grande inteligência de coordenação, tarefa que deveria ser do poder público.

Em alguns momentos, setores do poder público, na perspectiva de mostrar resultados diante da pressão, realizaram eventos, oficinas e pequenas ações nas favelas na busca por envolver a juventude, porém sem nenhum convite à escuta e à participação dos sujeitos na efetiva tomada de decisões. O efeito, apesar de bem-intencionado, é apenas midiático e imitador do papel de organizações da sociedade civil, chegando a disputar com elas e eximindo o poder público de um lugar de animador da construção de uma política pública consistente e coordenada com os diversos agentes e sujeitos necessários.

Essa falta de clareza e demora diante de um assunto tão delicado abriu espaço para a militarização da vida nas comunidades, como marca principal das UPPs. E a história de nosso país demonstra que quando isso acontece o resultado é a desvalorização da vida, fazendo caminhar para a barbárie que aponto aqui. Resumida algumas vezes de forma redutora na “boca do povo” como apenas uma troca de mandantes de armas — que antes estavam nas mãos dos traficantes e agora numa postura policial imprevisível. Essa falta de confiança e essa relação baseada na força afastaram a ideia de policiamento comunitário defendido no começo das UPPs em comunidades decisivas. A volta do tráfico armado já é narrada nas redes sociais e os conflitos são seguidos, gerando mortes indesculpáveis de todos os lados, sobretudo de jovens NEGROS.

As situações aqui narradas não são apenas desvios pequenos de um bom projeto. Elas se colocam como estruturais e tendem a colocar a barbárie diante de nós, mas afetando diretamente o direito à vida da juventude popular. Não há outro caminho que não passe pela mudança da estrutura da polícia, como diz Luiz Eduardo Soares; da legislação das drogas, como aponta Julita Lemgruber; e de uma política consistente de mobilidade social e direitos para a juventude pobre. Dizer que essas críticas às UPPs são apenas eleitoreiras e ideológicas é colaborar com esse festival de barbárie.

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