O Rio de Janeiro é o espelho do Brasil. O que ocorre no Rio de Janeiro fatalmente se transmitirá em cadeia para os outros Estados da Federação. As questões de justiça criminal e ordem pública não fogem desta regra. Portanto, é estratégico manter a atenção, estudar o cenário, analisar as experiências e observar as políticas lá realizadas, ajudando no alcance dos objetivos. A solução desta guerra envolve leis duras e um Sistema de Justiça Criminal integrado, ágil, coativo e comprometido em garantir o direito da população à segurança pública.

sábado, 12 de abril de 2014

UM BRASIL QUE EXISTE NA MARÉ



O GLOBO, Panorama Carioca, 12/04/2014


Aydano André Motta 


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Aquele mundo caótico que se estende a perder de vista, à direita de quem passa pela Linha Vermelha em direção à Zona Sul, está, desde domingo, ocupado pelo Exército, grife de sossego convocada quando a temperatura da segurança sobe além do que os cariocas entendem como aceitável. Com o projeto das UPPs patinando aqui, ali e acolá, o maior complexo de favelas da cidade — 16 comunidades populares, 38 mil domicílios, 130 mil moradores na rabeira do Índice de Desenvolvimento Humano, em condições etíopes de saneamento básico, segurança, respeito, cidadania — serve de moldura à procissão de blindados e homens fardados (que enfrentaram reações esparsas de traficantes e milicianos ao longo da semana).

A primeira impressão não pode ser outra — a de um território subjugado pelo crime, com uma população que referenda a mais repulsiva característica brasileira, a desigualdade. Mas outras mazelas, igualmente nossas, espreitam a Maré. Quer ver?

A edição daquele mês do principal jornal comunitários do Complexo circulava normalmente, distribuída de graça em casas e biroscas. Os moradores aguardavam o produto, para verem impressas ali algumas de suas muitas carências e de suas poucas conquistas (umas e outras ignoradas pelo mundo que passa e nem liga pelas vias expressas à sua margem). Uma reportagem em especial descrevia o sucesso de alguns alunos que conseguiram vagas em faculdades graças ao curso pré-vestibular mantido numa das favelas por uma ONG. Ao longo do texto, o serviço estava identificado pela sigla como era conhecido entre os jovens: CPV.

(Só vai estranhar a falta de nomes e outras informações mais específicas quem não sabe como a banda ainda toca no Rio de Janeiro.)

Alguns dias depois da distribuição do jornal, um adolescente bateu na ONG com um recado: o dono da boca de fumo estava chamando o responsável pelo jornal para uma conversa. Naquele lugar de leis próprias, tal ordem jamais deixaria de ser cumprida, e lá foi o jovem estudante de Comunicação ao encontro do traficante. Encontrou o bandido, de idade semelhante à dele, guardado por cúmplices armados, com um fuzil pendurado no ombro, a face furiosa — e o jornal na mão:

— Que p... é essa de CPV? Aqui é outra facção!

No primeiro momento, o interlocutor não entendeu, mas até se permitiu sorrir, quando afinal decifrou a reclamação. Fez menção de apontar a revista para explicar o contexto da sigla, mas o bandido, a agressividade em espiral, não permitiu:

— Não vou ler nada! Não leio! Não quero saber! Se falar de outra facção, é vala! — ordenou o traficante, expulsando o editor em seguida, para que seu ponto de comércio voltasse a seu funcionamento habitual.

A determinação, claro, foi cumprida, materializando, em pleno estado de direito, a censura de uma publicação pelo poder armado (para ratificar, aliás, uma premiada série de reportagens do GLOBO, de autoria dos craques da Editoria Rio, que, em 2007, documentou a ausência de liberdade e de direitos individuais nas comunidades populares da cidade). Exatamente como acontecia na Brasília dos anos de chumbo, onde produtores de conteúdo ouviam os desígnios dos mandachuvas da repressão. Na capital, ao menos, não corria esgoto a céu aberto.

Na Maré, tudo fica mais dramático pela (des)arrumação territorial. Facções inimigas e, porque nada é tão ruim que não possa piorar, milícias retalharam as favelas, afastando parentes, amigos, namorados. Alguns daqueles milhares de pobres cariocas repetem, com requintes sangrentos, as histórias das famílias vítimas do Muro de Berlim ou da divisão da Coreia, isoladas arbitrariamente pelos senhores da guerra.

Tomara que tenha começado a caminhada daqueles brasileiros na direção da cidadania plena. Como todos os outros, eles merecem.



O reino do ‘comigo não tá’

Como estamos os cariocas todos no mesmo barco da violência, espanta a falta de sensibilidade do Barrashopping com um cidadão vítima de sequestro-relâmpago no estacionamento do centro de consumo gigante. Ao longo do processo de indenização — encerrado com o shopping sentenciado a pagar R$ 50 mil, como deu no Ancelmo —, os advogados da empresa acusaram a vítima (dupla, no caso) de ter “fugido” para dentro do espaço privado, tentando escapar dos bandidos.

Não adiantou — o veredito do STJ, educativo, determinou que o shopping é, sim, responsável pelas ocorrências no estacionamento. Não dá para mandar o “não tenho nada com isso”.

Óbvio. Mas nesta terra que não é para principiantes, precisa alguém (importante) lembrar.



Miau, miau. Deu (também) no Ancelmo: a Light flagrou um gato no bloco 4 do Downtown. E um sócio do Devassa de Ipanema foi condenado pelo mesmo flagrante delito de roubo de energia. Então, é aquilo: tem que prender os bandidos. Mas antes, defina bandido.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/um-brasil-que-existe-na-mare-12175610#ixzz2ygbr88Ky
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