O Rio de Janeiro é o espelho do Brasil. O que ocorre no Rio de Janeiro fatalmente se transmitirá em cadeia para os outros Estados da Federação. As questões de justiça criminal e ordem pública não fogem desta regra. Portanto, é estratégico manter a atenção, estudar o cenário, analisar as experiências e observar as políticas lá realizadas, ajudando no alcance dos objetivos. A solução desta guerra envolve leis duras e um Sistema de Justiça Criminal integrado, ágil, coativo e comprometido em garantir o direito da população à segurança pública.

domingo, 30 de março de 2014

PACIFICADO OU CONFLAGRADO?


ZERO HORA 30 de março de 2014 | N° 17748

TEXTO HUMBERTO TREZZI IMAGENS FERNANDO GOMES

DILEMA DO RIO


Correu o mundo a imagem de dezenas de bandidos em fuga, deixando cair armas, dias antes da ocupação do Complexo do Alemão pelas Forças Armadas, em 2010. Criminosos que exibiam um arsenal para os fotógrafos e fustigavam a tiros os PMs que ousassem se aproximar. Pois a ocupação aconteceu, o Exército ficou dois anos nas 13 favelas da região e o cenário, agora, não poderia ser mais diferente. Para melhor.

Saíram de cena os criminosos armados – é possível passear pelas 13 favelas, sem ver nenhum. O Alemão ganhou um sistema de teleféricos cujos bondinhos percorrem quatro morros do complexo, facilitando – e como! – a vida dos moradores.

Que o diga Juarez Ferreira, o Juarez Sukita, mestre de capoeira que passa os dias a ensinar a técnica de dança-luta para cem alunos das favelas. Um curso disputadíssimo. Aos 60 anos, ele desfruta agora dos bondinhos coloridos para subir os morros do Adeus e Alemão.

– Faço isso em 10 minutos, quando antes levava mais de uma hora. Melhorou 200% – elogia.

Os bondinhos são uma das promessas cumpridas pelo governo federal. Já o estadual e a prefeitura colocaram, além de quatro UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), agências bancárias, postos policiais da Mulher e do Idoso, postos dos Correios e da Previdência Social. Ruas foram pavimentadas e também foi melhorada a rede de esgoto. Tudo isso viabilizado após a implantação das UPPs, bases policiais comunitárias que resgataram para o Rio territórios imensos que estavam sob controle da bandidagem.

Pois a implantação desses Territórios da Paz, que especialistas consideram como a mais importante novidade na segurança pública brasileira nas últimas décadas, está em xeque. Ataques de bandidos a UPPs (foram sete este ano) deixaram quatro policiais mortos, em investidas ordenadas desde os presídios. Desde que a primeira dessas bases comunitárias foi inaugurada, em 2008, 11 PMs que nelas trabalhavam foram assassinados, em represália contra a retomada de seus territórios pelo Estado.

Os atentados, que parecem mirar alvos aleatórios – alguns PMs são fuzilados na saída do serviço, outros mortos a tiros quando passam na rua – derivam do choque de dois conceitos. De um lado está a proposta de reocupação de território pelo Estado, após décadas em que as favelas se viram abandonadas. No outro espectro do campo de batalha estão os bandidos sociais, que existem há décadas no Rio. Líderes violentos que garantem popularidade com pagamento de enterros, auxílio-nascimento, em um modelo de assistencialismo. É uma queda de braço na qual os bandidos, desde 2008, vêm perdendo terreno.

Complexo da Maré virou QG de facções

É por isso que, em um contra-ataque governamental, neste fim de semana mais de mil PMs devem marchar pelas vielas do Complexo da Maré, conjunto de 16 favelas controladas por duas facções.

A Maré foi escolhida por dois motivos: está próxima ao Aeroporto Internacional Tom Jobim e entre as três principais vias do Rio, a Linha Amarela, a Linha Vermelha e a Avenida Brasil, e se tornou o maior reduto do Comando Vermelho, mais importante facção criminal fluminense. É gente armada com joias da indústria bélica: lança-foguetes, bazucas e fuzis de vários tipos.

Pois esse arsenal, em mãos tanto de integrantes do Comando Vermelho (CV) quanto de seus rivais do Terceiro Comando Puro (TCP), é usado em quase todos os ataques – a maioria realizada pelo CV, que tem ingerência sobre 32 das 38 áreas em que foram implantadas UPPs.

A ofensiva dos traficantes acontece no momento de maior impopularidade das UPPs – e aí pode não ser mera coincidência. Episódios como a tortura e morte de um suspeito no posto policial da Rocinha e a prisão por extorsão de policiais da UPP da Mangueira minaram a imagem até então impoluta das “unidades pacificadoras”.



“O que tu tá filmando?”



Quinta-feira, 27 de março, 20h – A equipe de Zero Hora percorre o Dona Marta, morro da Zona Sul onde foi instalada a primeira UPP do país. É um dos mais íngremes montes do Rio, um maciço rochoso com uma vista de tirar o fôlego, de frente para a Baía de Botafogo. Pena que é noite. A escolha por um passeio noturno se deu justamente para verificar se, como no passado, os traficantes ainda barram estranhos que se atrevam a ingressar na favela.

O começo do passeio é animador. Subimos a ladeira bem iluminada. Donas de casa e feirantes pechincham o preço dos legumes, aos gritos. Jovens casais de turistas, falando inglês, percorrem as vielas rumo a dois bares que estão lotados, animados por roda de samba de raiz. Ladeira acima cresce a escuridão, até um elevador que leva ao topo do morro e onde fica a UPP. Tranquilidade total.

Começamos a fotografar e filmar, narrando o passeio – algo que representaria suicídio, anos atrás, pela contrariedade que isso traz aos traficantes. Logo percebo que a situação não mudou tanto assim. Estou descendo a rua quando um sujeito forte encosta ao meu lado e fala alto:

– Que tu tá filmando, rapaz?

Desgrudo o olhar do visor e respondo para ele:

– A feira, a roda de samba. Por quê?

O rapaz continua a ladainha:

– Com permissão de quem? Tu vai te incomodar, tu vai te incomodar...

Ato contínuo, ele vira para outros rapazes sentados na calçada, de bermuda e tênis de marca, e grita:

– Ele tá filmando, tá filmando.

Os rapazes levantam. Ainda bem que estou próximo aos bares. Dou um jeito de me misturar aos fregueses e, assim que posso, saio do local e desço o morro. Sempre vigiado.

Nos anos 80, facção tinha até assessoria

Para quem vai a primeira vez, essa pode ser uma situação incômoda. Mas já foi bem pior. Em 1987, o Brasil inteiro assistiu pela TV a batalha de quase duas semanas entre duas quadrilhas do Dona Marta, uma liderada pelo traficante Zaca (ex-PM) e outra por Cabeludo. Trocavam tiros à luz do dia, em frente às câmeras dos jornalistas. Tinham até uma assessora de imprensa, a Carlinha, que desfilava com dois revólveres na cintura.

Em 1995, ZH estava ao pé do Dona Marta quando começou um tiroteio. Metralhadoras antiaéreas, daquelas com cinturão de balas, disparavam para o céu projéteis traçantes, capazes de atravessar vários barracos. Perto disso, o cenário agora é paradisíaco. Pelo menos não vimos armas.

A ausência do armamento entre os traficantes do Dona Marta é, justamente, o que leva a antropóloga Alba Zaluar, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) – uma das maiores estudiosas de crimes no país – a defender a implantação das UPPs.

– Apesar das carências, as UPPs deram certo, especialmente em favelas da Zona Sul. Hoje, elas abrem restaurantes, bares, pousadas, onde antes só havia o tráfico como empregador. A ocupação, como a que será feita na Maré, tem mérito por tirar as armas de circulação. Depois o Estado tem de complementar com investimento social – analisa Alba.



Ataques e assassinatos gestados em presídios

Um relatório da Polícia Civil aponta que os atentados contra UPPs foram ordenados pelo traficante Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, que está em um presídio federal. Ele é aliado do famoso Fernandinho Beira-Mar, preso desde 2001.

A determinação teria sido executada pelos traficantes José Benemário de Araújo, Claudio Fontarigo (o Claudinho da Mineira), Ricardo Chaves de Castro Lima (Fu), Bruno Eduardo da Procópio (o Piná), Adauto Gonçalves (o Pit Bull) e Luciano Martiniano da Silva (o Pezão), após encontros no Morro do Chapadão (em Costa Barros) e Antares (em Santa Cruz), subúrbios do Rio. Sem dar nomes, o secretário da Segurança José Mariano Beltrame confirma a jornalistas que a ordem para ataques partiu de traficantes presos.

Operação do Bope antecipa ocupação

Como resposta do Estado, o governo do Rio anunciou, na semana passada, que o Complexo da Maré será ocupado por militares das Forças Armadas e pela Força Nacional de Segurança. Conforme informações da inteligência policial, é de lá, onde vivem 130 mil pessoas, que partem os criminosos responsáveis pelas ações. A operação, marcada para acontecer no dia 7 de abril, foi antecipada. Na sexta, o governo anunciou que soldados do Bope farão uma investida neste domingo, preparando o terreno para a ocupação.


Propina e tortura mancham imagem


Na última semana, soldados do 22º Batalhão de Polícia Militar quebraram objetos durante revista de casas no Complexo da Maré, como ZH constatou. Mulheres choravam enquanto eles faziam a busca de drogas e armas, não encontradas.

Na Zona Oeste, PMs do 9º BPM mataram um suspeito de tráfico – sob tortura, dizem testemunhas – e, furiosos, populares descontaram a raiva incendiando carros de motoristas que passavam pela Vila Vintém. São desse mesmo batalhão os policiais que deixaram cair no asfalto uma mulher ferida que era transportada no porta-malas de uma viatura, fato gravado em vídeo por populares.

Foi justo para evitar episódios desse tipo que a PM fluminense criou as UPPs. A ideia é que os policiais não sejam vistos como tropa de ocupação, mas como parceiros da comunidade. Tanto que todos os escolhidos para servir nas unidades de pacificação são recrutas novatos e, teoricamente, imaculados.

Pois três episódios recentes mancharam a imagem das UPPs no Rio, que até então tinham popularidade suficiente para eleger e reeleger governadores. O primeiro foi a descoberta de um esquema de “mesada” que seria paga por traficantes dos morros do Fallet e do Fogueteiro, na área central da cidade, ao comandante da UPP local, que foi afastado em 2012.Foram afastados 30 policiais dali, suspeitos de faturarem R$ 52 mil mensais em propina.

A segunda revelação, também em 2012, foi de que PMs da UPP da Mangueira teriam exigido o pagamento de R$ 3,5 mil de um homem em cuja casa foram apreendidas droga e dois celulares. A suspeita levou à prisão de 12 policiais, que já estão soltos, mas foram removidos e respondem a processo.

A terceira e mais polêmica mancha é o sumiço do pedreiro Amarildo de Souza, suspeito de tráfico, detido por policiais da UPP da Rocinha. Ele sumiu há mais de seis meses. Testemunhas dizem que foi torturado até a morte. Dez policiais envolvidos no caso estão presos até hoje.

Quase meio milhão em cocaína e crack

A última e péssima notícia sobre UPPs saiu esta semana. Policiais civis da 45ª DP estouraram quarta-feira um laboratório de cocaína na Fazendinha, no Complexo do Alemão. Foram apreendidos 15 quilos de cocaína, 730 pedras de crack e 15 litros de lança perfume, material avaliado em R$ 450 mil. A estranheza acontece porque desde 2010, segundo o governo, o Alemão estaria livre do tráfico pesado – então o que faziam escondidos ali quase meio milhão de reais em drogas? É um tiro na imagem das UPPs, pois esse conjunto de 13 favelas é o que reúne mais unidades pacificadoras, quatro.

– O problema das UPPs, uma boa iniciativa, é que os policiais escolhidos para ela já começam a ser contaminados pelos vícios da PM fluminense, historicamente envolvida com torturas e assassinatos – pondera o sociólogo e jornalista Marcos Rolim, especialista em segurança pública.

Mesmo com o crescente envolvimento de policiais de UPPs em suspeita de crime, é certo que eles ainda estão acima da média, no quesito honestidade.


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